A noite dos filhos ausentes
Jânio Ferreira Soares
Para quem mora no sertão do São Francisco, o mês de junho tem um jeito que é só seu. As catingueiras florescem, os dias ficam mais curtos, o pôr-do-sol não se cansa de provocar os insensíveis, e as noites ficam deliciosamente invernais e convidativas à preguiça, ao cafuné e a um bom copo de café acompanhado de um pedaço de canjica bem fresquinha servida lá pela hora da Ave Maria. Além disso, ainda tem um saudoso som de forró saindo dos rádios e das difusoras das praças, confirmando definitivamente que o mês dos santos festeiros chegou. Primeiro Antônio, depois João e, por fim, Pedro. (O trio pé-de-serra de qualquer festa no céu).Aqui em Glória, que antigamente trazia Santo Antônio no nome, a trezena em sua homenagem vai até o dia 13 de junho, sempre com muito sino tocando, foguete subindo e beatas rezando, além de um forró comendo no centro assim que o padre deseja que o Senhor esteja conosco e a gente responde que ele já está no meio de nós. A partir daí, até o próprio vigário tira a batina e cai na dança, sempre respeitando uma certa distância regulamentar da dama, é claro, que é para evitar as tentações de um certo anjo decaído que pode querer estimular a fama de casamenteiro do santo.Glória, para quem não é da região, foi a cidade que mais sofreu com uma das primeiras transposições do Rio São Francisco.É tanto que, se alguém comentar com seus moradores mais antigos sobre essa de agora, muitos darão de ombro, franzirão a testa e dirão: “Pior foi a outra”.A outra, a que eles se referem, aconteceu no início dos anos 70, quando a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) desviou as águas do rio para que fosse construída a Barragem de Moxotó e a Usina Apolônio Sales, o que ocasionou o desaparecimento definitivo da centenária cidade. Na ocasião, os glorienses viram toda a sua história e seus sonhos irem, literalmente, por água abaixo, sem sequer uma orientação sobre o que estava realmente acontecendo. Aliás, o que ocorreu por aqui foi de uma violência tão absurda e inexplicável, que até hoje a população não entende muito bem como o mesmo rio que carinhosamente lhe lambia as costas foi capaz de lhe tirar a vida.Na época, ainda não existia o Ibama, tampouco essa corajosa ministra Marina Silva, que acertadamente anda jogando duro para evitar novas agressões do tipo. Até sugiro a ela que use o exemplo de Glória como uma espécie de modelo a não ser seguido quando uma cidade tiver que desaparecer do mapa em nome do progre sso.Até hoje os seus moradores reclamam desse arremedo de cidade que construíram para substituir aquela cercada por serras e tamarineiros, que solenemente sombreavam as calçadas e os quintais dos velhos casarões. E no lugar das roças e sítios onde abundavam a fartura, eles hoje vivem à míngua, plantando sonhos e colhendo saudades. Não raro, eu os encontro meio ariados pelas ruas, como se a procura de vida.E é justamente nessa trezena que esse pessoal tem a chance de rever uma pequena parte do seu passado. Principalmente na Noite dos Filhos Ausentes, que é a data reservada àqueles que estão distantes.É como se alguém tivesse o poder de rebobinar a fita do tempo. Diante de mim, alguns daqueles velhos rostos que foram cúmplices da minha juventude, ainda firmes e felizes (por quê não?), como se dissessem: “Apesar de tudo, estamos aqui, dando vivas a Santo Antônio”. E a cada abraço, eu sinto de novo aqueles inesquecíveis cheiros que pareciam definitivamente perdidos no lado da memória que ainda é criança e que voltam a fluir como se nunca tivessem sumido. E eles reaparecem tanto na naftalina de uma camisa estampada, quanto num surrado xale preto, ou então no rastro de uma loção de barba, não importa.O importante é que, por alguns instantes, eles me lembram as gaiatices do meu tio Pedro, as deliciosas risadas de Santa e Maninha, ou ainda o característico rangido da rede do meu pai.Pena que alguns filhos queridos, como Mário Lima, Vitor Hugo, Edgar Campos e tantos outros, não puderam vir. Para eles, uma sugestão: antes de dormir, fechem bem os olhos e pensem no som de uma zabumba e no chiado dos foguetes espalhando seus pequenos fragmentos de luz pelo céu. E se, por acaso, a boca salivar, não se assustem. São apenas recordações de um tempo em que os tamarindos e umbuscajás pareciam eternos.
Jornal A Tarde 07/06/2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário